quarta-feira, 3 de abril de 2013

Era uma vez um barco




 
Era uma vez um barco que tinha medo do mar. Quando o meteram à água, a primeira vez achou-lhe graça. E antes, enquanto o faziam, quando sentiu que sentia alma, via na água um destino, e pensava em como seria bom sentir a água no casco, a água que afagava as pedras da borda do rio, ali ao lado, no sítio onde o faziam. Quando depois o meteram à água, achou-lhe graça. E começou a vida de barco na água do rio. No dia a dia levavam-no rio acima.
No dia a dia traziam-no rio abaixo. Sem sobressaltos. Dias bonitos. Com transportes de gentes. Transportes dos seus pertences. Gente que entrava. Gente que saía. Gente que passava que vivia. E quem entrava e quem saía, falava e contava. Histórias de marinhas e marinheiros. Histórias que falavam do que era o mar. Naquelas viagens rio acima e rio abaixo ouvia falar do mar. Da braveza. Da profundidade.
Do que dava. Do que tirava. De como era o mar grande. E salgado. Começou a crescer-lhe a curiosidade. E nasceu-lhe uma vontade de conhecer o mar. Vontade própria inconsequente, que vontade de barco não é nada. Achava ele, pensava. E por isso as viagens rio acima e rio abaixo, dia a dia, continuaram. Até que um dia... Um dia a viagem desse dia não foi rio acima. Foi só rio abaixo. Em vez de olhar as margens já tão conhecidas, via margens desconhecidas. E as margens alargavam-se. Mais e mais. Afastaram-se as margens tanto que deixou de ver a outra margem. Antes seguia sempre no meio do rio. Agora era juntinho a uma margem que passava. Parecia que o rio já não era rio. Começou a ter medo e a perguntar-se onde estava. No céu voavam pássaros brancos que piavam. Alto.
Mal batiam as asas e voavam. De vez em quando se encolhiam e picavam, enfiavam-se água adentro e voltavam. Um peixe preso no bico. Quando um picou junto a ele, a entrar na água caída lá do alto, quase sem barulho, assustou-se. Voltou o pássaro à tona num instante, o bico enorme armado de peixe grande a estrebuchar. E o peixe, a lutar, parou uns momentos, a olhá-lo, e parecia perguntar “que fazes aqui?”. E os olhos pequeninos do pássaro, o peixe bem firme no bico, olhavam-no e pareciam perguntar “que fazes aqui?”. E um peixe mais afoito, sentindo o pássaro ocupado, chegou-se à superfície, curioso, olhou-o e parecia perguntar “que fazes aqui?”. No bico enorme o peixe continuava a torcer-se. Até que o bico deu uma volta ao peixe e o peixe desapareceu, goela adentra, e as asas bateram, e o corpo andou sobre a água, e em menos de nada o pássaro já estava lá no alto de novo, a piar forte ao lado dos outros pássaros, que o barco não sabia, mas que se chamavam gaivotas, e os pássaros piavam todos e parecia que todos gritavam “que fazes aqui? que fazes aqui?”.
E ele não sabia o que fazia ali nem onde era aquele ali onde estava. Até que sentiu o que antes nunca tinha sentido. Parecia que a água afagava de modo diferente. Do outro modo de afagar da água quando ia rio acima, quando ia rio abaixo. Ali a água tinha outro trato. Mais forte. Mais bruta. A água chegava-lhe numa brusquidão que não conhecia. E a medida que a viagem continuava mais aquela água batia. Até que deixou de bater. Estranhamente. Mas sentia-se a subir, e a descer, subia, descia, num ritmo alucinante, deixava de ver à volta o que fosse de terra conhecida, afundava-se em buracos de água, descia entre água, água a toda a volta, paredes de água, para subir depois em vertigem, disparado para o alto, suportado quase em nada, o céu tão perto, e olhando em volta só água em altos, em baixos, movimentos perpétuos, de novo vinha para baixo, de novo para cima, sem parar, estonteante, ritmo alucinante. E ali a água era amarga. Um amargo estranho. Tudo era estranho. Lembrou-se das histórias, e fixou-se nos detalhes, nas partes menos percebidas, agora com sentido, as ondas, as vagas, o sal, tempestades. Ali era o mar. Tinha medo do mar. Tinha medo daquele mar. E no ar já não haviam gaivotas. Nem os peixes por perto. E ninguém o parecia fixar, como quem pergunta, como quem se admira, “que fazes aqui?”, ninguém no mar, só ele no ar, pelas vagas, só ele entre o mar, pelas cavas, e o mar não lhe perguntava, “que fazes aqui?”, ele sozinho, no mar aquele mar.Odiou o mar.
Odiou o desconhecido. Odiou o que passava, odiou o que vivia, sonhou que sonhava, e o mar açoitava as vagas, as cavas. Quis fugir. E só era um barco. Que vontade de barco não é vista nem achada nas andanças em que anda, nas andanças que passa. As andanças. Continuaram. Não passaram. Depois pararam. Estava um peixe a passar. Estava um cardume a passear. Uma alga a evoluir. Uma medusa a fluir. Estava uma concha aberta. Estava uma estrela desperta. E no céu. Milhões de estrelas pestanejavam. No céu, o luar. Passeava. Por entre nuvens muito escuras. Por entre ventos e chuvas. E no fundo do mar, o barco que tinha medo do mar, já não tinha medo do mar.
(Autor Desconhecido)

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